CARTA DE PÊRO VAZ DE CAMINHA (VIII)
“E despois moveu o capitão para cima, ao longo do rio, que anda sempre a carão da praia, e ali esperou um velho que trazia na mão uma pá d’almadia. Falou, estando o capitão com ele perante todos nós, sem o nunca ninguém entender nem ele a nós, quanto a cousas que lhe homem perguntava d’ouro, que nós desejávamos saber se o havia na terra. Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furado um grande dedo polegar.
E trazia metido no furado uma pedra verde, ruim, que çarrava por fora aquele buraco. E o capitão lha fez tirar e ele não sei que diabo falava e ia com ela para a boca do capitão para lha meter. Estivemos sobre isso um pouco rindo então enfadou-se o capitão e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não, por ela valer alguma cousa, mas por mostra.
E despois, a houve o capitão creio para com as outras cousas a mandar a Vossa Alteza. Andámos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos. Então tornou-se o capitão para baixo, para a boca do rio, onde desembarcámos.
E além do rio andavam muitos deles, dançando e folgando uns ante outros, sem se tomarem pelas mãos, e faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém que é homem gracioso e de prazer, e levou consigo um gaiteiro nosso, com sua gaita, e meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos. E eles folgavam e riam e andavam com ele mui bem, ao som da gaita. Despois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito.
E, conquanto os com aquilo muito segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como monteses. E foram-se para cima. E então o capitão passou o rio com todos nós outros e fomos pela praia, de longo, indo os batéis assim a carão de terra. E fomos até uma lagoa grande d’água doce, que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai água por muitos lugares.
E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão que Bartolomeu Dias matou e levava-lho e lançou-o na praia. Abasta (que até aqui, como quer que se eles em alguma parte amansassem, logo duma mão para a outra se esquivavam, como pardais de cevadoiro, e homem não lhes ousa falar de rijo por se mais não esquivarem.
E tudo se passa como eles querem por os bem amansar. Ao velho, com que o capitão falou, deu uma carapuça vermelha e com toda a fala, que com ele passou, e com a carapuça, que lhe deu, tanto que se espediu, que começou de passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar do rio para aquém.
Os outros dous, que o capitão teve nas naus, a que deu o que já dito é, nunca aqui mais apareceram, de que tiro ser gente bestial e de pouco saber e por isso são assim esquivos. Eles, porém, com tudo, andam muito bem curados e muito limpos e naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses que lhes faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos e tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser.”
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