CARTA DE PÊRO VAZ DE CAMINHA (VI)
“Enquanto estivemos à missa e à pregação, seriam na praia outra tanta gente pouco mais ou menos como os d’ontem, com seus arcos e setas, os quais andavam folgando e olhando-nos, e assentaram-se. E, despois d’acabada a missa, assentados nós à pregação, alevantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço.
E alguns deles se metiam em almadias, duas ou três, que aí tinham, as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra senão quanto podiam tomar pé. Acabada a pregação, moveu o capitão e todos para os batéis, com nossa bandeira alta; e embarcámos e fomos assim todos contra terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo Bartolomeu Dias em seu esquife, por mandado do capitão, diante, com um pau duma almadia, que lhes o mar levara, para lho dar, e nós todos, obra de tiro de pedra trás ele.
Como eles viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pusessem os arcos e muitos deles os iam logo pôr em terra, e outros os não punham. Andava aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não já que m’a mim parecesse que lhe tinham acatamento nem medo.
Este, que os assim andava afastando, trazia seu arco e setas e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos e espáduas e pelos quadris, coxas e pernas até baixo; e os vazios com a barriga e estômago eram da sua própria cor. E a tintura era assim, vermelha que a água lha não comia nem desfazia, antes, quando saía da água, era mais vermelho. Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias. E andava entre eles sem eles entenderem nada nele quanto a para lhe fazerem mal, senão quanto lhe davam cabaços d’água.
E acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao capitão e viemo-nos às naus a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem lhes dar mais opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram. Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, espraia muito a água e descobre muita areia e muito cascalho. Foram alguns, em nós aí estando, buscar marisco e não no acharam.
E acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande camarão e muito grosso, que em nenhum tempo o vi tamanho. Também acharam cascas de bergões e d’amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E, tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por mandado do capitão-mor, com os quais se ele apartou e eu na companhia.
E perguntou assim a todos se nos parecia ser bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que agora nós podíamos saber, por irmos de nossa viagem.
E, entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram. E, tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se seria bom tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza e deixar aqui por eles outros dous destes degradados.”
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