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"CRÓNICA PARA TOMAR"

Excertos de crónica dedicada a Tomar, escrita por um dos mais aclamados escritores mundiais, António Lobo Antunes:

“Agora, à noite, eu sozinho no silêncio da casa. Os livros tão quietos, as fotografias, os quadros, uma espécie de eternidade breve na contidão do relógio. Luzes ao longe. Escrevo, como sempre que escrevo aqui, na mesa de comer. O estádio de futebol apagado, poucas lâmpadas nos prédios. Dói-me qualquer coisa atrás dos olhos, não bem dor, uma impressão. Pela janela aberta o som dos automóveis. Em baixo, no baldio, um cão principia a chamar, entre duas oliveiras e uma ruína: uma ruína neste momento um novelo de sombras, de manhã um pedaço de muro. De quando em quando percebe-se o vento: não muito alto, um cochicho. Diz o quê? Apetecia-me que alguém cantasse, a voz de uma mulher como em Tomar, há muitos anos, andava eu na tropa. No sossego da messe dos oficiais, a meio do escuro, a voz. Sentia-me bem em Tomar. O enfermeiro do Hospital da Misericórdia, cheio de gestos. As árvores. As árvores.

Tomar. Camionetas de carreira, lado a lado, no aterro. O tribunal a cheirar a papel podre, a cartão bafiento. Funcionários alheados, arbustos que se agitavam como galinhas quando os galos as deixam, cacarejando folhas. O rio em Agosto com centenas de peixes, canivetes, só lâmina, furando a água, até à superfície, para apanharem um insecto com os dois dedos da boca: o lábio de cima o indicador, o lábio de baixo o polegar. Os olhos deles imperturbáveis, gordos. Salgueiros reflectidos, mais autênticos que os salgueiros cá fora. Alugavam-se barquinhos, remava-se entre caniços, musgos. Não só a esposa verde, tudo verde, nunca pensei que o verde fosse tantas cores, nunca pensei que no verde todas as cores do mundo. Dúzias. Qual dúzias? Mil. O retrato, com uma farda número um emprestada, para o cartão de oficial.

Salgueiros reflectidos, mais autênticos que os salgueiros cá fora. Meti-me no automóvel. Não sei porquê custou a pegar. Ou sei porquê: não tinha força para rodar a chave. Há alturas, quando os touros e as bonecas choram (não nós, claro, não nós) em que não se tem força para rodar uma chave.”

António Lobo Antunes (Crónica na Revista “Visão”, de 5 de Agosto de 2004)

20 Maio, 2006 at 9:57 am Deixe um comentário


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