EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO – DO LADO DE SWANN (V)
“Durante todo o tempo em que estava longe de Gilberte, tinha necessidade de a ver, porque, procurando constantemente ter presente a sua imagem, acabava por já não o conseguir e por já não saber exactamente a que correspondia o meu amor. Além disso, ela ainda nunca me dissera que me amava. Muito pelo contrário, afirmara muitas vezes que tinha amigos que preferia, que eu era um bom companheiro com quem gostava de jogar embora um pouco distraído, não muito interessado no jogo; enfim, dera-me muitas vezes sinais ostensivos de frieza, que teriam abalado a minha crença de que era para ela um ser diferente dos outros se tal crença tivesse a sua origem num amor que Gilberte sentisse por mim, e não, como tinha, no amor que eu sentia por ela, o que tornava essa crença muito mais resistente, porque a fazia depender do próprio modo como era obrigado, por uma necessidade interior, a pensar em Gilberte. Mas os sentimentos que nutria por ela, nem eu lhos tinha declarado ainda. É certo que em todas as páginas dos meus cadernos escrevia indefinidamente o seu nome e a sua morada, mas, ao ver aquelas vagas linhas que traçava sem que por causa disso ela pensasse em mim, linhas que lhe faziam ocupar à minha volta tanto espaço aparente sem por isso estar mais dentro da minha vida, sentia-me desanimado porque elas não me falavam de Gilberte, que nem sequer as veria, mas do meu próprio desejo, que pareciam mostrar-me como algo de puramente pessoal, irreal, fastidioso e impotente. O mais imediato era que Gilberte e eu nos víssemos e que pudéssemos fazer um ao outro a confissão recíproca do nosso amor, que até então por assim dizer não havia começado ainda. É claro que as diversas razões que me tornavam tão impaciente de a ver teriam sido menos imperiosas para um homem maduro. Mais tarde, então mais hábeis na cultura dos nossos prazeres, acontece contentarmo-nos com aquele que sentimos ao pensar numa mulher como eu pensava em Gilberte, sem ficarmos inquietos por saber se essa imagem corresponde ou não à realidade, e também com o de amar sem necessidade da certeza de que ela nos ama; ou ainda renunciarmos ao prazer de lhe confessar a nossa inclinação por ela, a fim de conservarmos mais viva a inclinação que ela tem por nós, imitando aqueles jardineiros japoneses que, para obterem uma flor mais bela, lhe sacrificam várias outras.”
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