EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO – DO LADO DE SWANN (II)
“Como eu não tinha qualquer noção da hierarquia social, a impossibilidade que há muito o meu pai decidira de que frequentássemos a senhora e a menina Swann, ao fazer-me imaginar entre elas e nós grandes distâncias, tivera antes o efeito de lhes atribuir prestígio a meus olhos. Lamentava que a minha mãe não tingisse o cabelo nem pintasse os lábios, como eu ouvira dizer à nossa vizinha, a senhora Sazerat, que a senhora Swann fazia para agradar, não ao marido, mas ao senhor de Charlus, e pensava que devíamos ser para ela objecto de desprezo, o que me desgostava, sobretudo por causa da menina Swann, que me haviam dito ser uma menina tão bonita e com quem eu sonhava muitas vezes atribuindo-lhe sempre um mesmo rosto arbitrário e encantador. Mas, quando soube nesse dia que a menina Swann era um ser de uma condição tão rara, mergulhada como no seu elemento natural em tantos privilégios que, quando perguntava aos pais se vinha alguém jantar, lhe respondiam com estas sílabas cheias de luz, com o nome desse conviva de oiro que para ela não passava de um velho amigo da família: Bergotte; que, para ela, a conversa íntima à mesa, o que para mim correspondia à conversa da minha tia-avó, eram palavras de Bergotte acerca de todos aqueles assuntos que não pudera abordar nos seus livros, e sobre os quais eu bem gostaria de o ouvir emitir os seus oráculos; e que, por fim, quando ia visitar cidades, ia com ele ao seu lado, desconhecido e glorioso, como os deuses que desciam ao meio dos mortais – então senti, ao mesmo tempo que o valor de um ser como a menina Swann, como eu havia de lhe parecer grosseiro e ignorante, e experimentei tão vivamente a suavidade e a impossibilidade que para mim existiria em ser seu amigo que me enchi ao mesmo tempo de desejo e desespero. Agora, a maioria das vezes, quando pensava nela, via-a diante do pórtico de uma catedral, explicando-me o significado das estátuas, e, com um sorriso que me lisonjeava, apresentando-me a Bergotte como seu amigo. E sempre o encanto de todas as ideias que as catedrais em mim faziam nascer, o encanto das encostas da Ilha de França e das planícies da Normandia, faziam refluir os seus efeitos sobre a imagem que formava da menina Swann; era estar pronto para amá-la”.
[864]
Entry filed under: Livro do mês.