Memória (VII)
24 Junho, 2008 at 8:21 am Deixe um comentário
Depósitos da memória
O papel fundamental desempenhado pela escrita na conservação da memória era já claramente percebido na época medieval, o que era expresso de forma eloquente nos preâmbulos (arengas) com que se iniciavam muitos dos documentos, nos quais se louvava a escrita como remédio para obviar à fragilidade da memória humana (vidé artigos anteriores desta série).
Na actualidade, o quadro legislativo português, datado de 2001, inclui entre o património a proteger “todos os bens (…) portadores de interesse cultural relevante” e que reflectem “valores de memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade”.
No ano de 1992, a UNESCO, preocupada com a preservação, criação e manutenção das diferentes instituições de memória e dos seus acervos, decidira já criar o Programa “Memória do Mundo”, propondo a intensificação dos esforços visando a preservação de documentos e arquivos históricos, de que a face mais publicamente visível é o “Memory of the World Register” (lista de património documental de reconhecido significado mundial), criado em 1995.
Um reflexo do reconhecimento de que as fontes escritas constituem um património a preservar, valorizar e explorar, considerado como “mirror of the world and its memory”… mas uma memória frágil, da qual, a cada dia, partes insubstituíveis desaparecem para sempre.
O Programa “Memória do Mundo” tem como valores fundamentais a noção de que o património documental é pertença da humanidade (de todos nós!), e, como tal, deverá ser integralmente preservado e protegido… para que seja acessível de forma permanente e universal.
Para além de ter começado por estabelecer uma relação de bibliotecas e arquivos em risco, e promovido o uso das novas tecnologias para a preservação e conservação de documentos, encorajando a produção de cópias e catálogos digitalizados, disponibilizados para consulta na Internet, assim como a publicação e distribuição de livros, CD’s, DVD’s e outros produtos, possibilitando a mais vasta divulgação, foram admitidas, até à data, cerca de 160 inscrições no Registo “Memory of the World”.
Em 2007, Portugal viu serem inscritos neste registo, como bens do património documental, o Tratado de Tordesilhas (datado de 1494, pelo qual Portugal e Espanha partilharam o mundo a descobrir – na sequência de candidatura conjunta dos dois países, os quais conservam, cada qual, o seu original do documento, escrito sobre pergaminho), tal como o “Corpo Cronológico” (colecção que reúne mais de 80 mil documentos em papel e pergaminho, datados desde 1161, mas principalmente dos séculos XV e XVI, na Torre do Tombo, em Lisboa), juntando-se à Carta de Pêro Vaz de Caminha, escrita já em papel, dirigida em 1500 ao Rei D. Manuel I, dando-lhe conta do achamento do Brasil.
A colecção “Corpo Cronológico” foi formada sob a iniciativa de Manuel da Maia, guarda-mor da Torre do Tombo – que recebeu a sua denominação no século XVIII, depois do Terramoto de 1755, que fez ruir a torre do castelo de S. Jorge, em Lisboa, onde se conservava o arquivo régio – durante o período de 1756 a 1764, tendo organizado a documentação com base em critérios cronológicos, do que decorre a sua designação.
A documentação que o integra contém fontes da maior relevância para o conhecimento da História da Europa, da África, da Ásia e da América do Sul, particularmente do Brasil: tratados de paz entre Portugal e outros países, doações régias, documentos sobre a administração do Reino e do Ultramar, correspondência sobre acontecimentos e política ultramarina (ocorrências em todas as possessões atlânticas e índicas), correspondência diplomática europeia (sobre assuntos da Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Itália, Europa Central, Europa Oriental e do Império Turco) e ultramarina, para além de alguns diplomas pontifícios.
No âmbito do Projecto “TT Online” foram digitalizados e disponibilizados online cerca de 45 300 documentos, correspondentes a mais de 300 000 imagens, em regime de plena acessibilidade.
Portugal conserva um elevado número de outros documentos que urge preservar – não apenas na Torre do Tombo, mas dispersos por todo o país -, em alguns casos esperando ainda a constituição de arquivos, guardados por ora sem cuidados e, em muitos casos, sem que se saiba sequer qual o material existente. Um desafio que requer uma resposta consentânea com a sua relevância, enquanto parte essencial da memória colectiva portuguesa.
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