EÇA DE QUEIRÓS – A CIDADE E AS SERRAS (V)
“Muitas vezes, Jacinto, durante esses anos, falara com prazer num regresso de dois, três meses, ao 202, para mostrar Paris à prima Joaninha. E eu seria o companheiro fiel, para arquivar os espantos da minha serrana ante a cidade!
Mas depois conveio esperar que o Jacintinho completasse dois anos, para poder jornadear com conforto, e apontando já com o seu dedo para as coisas da civilização. Mas quando ele, em Outubro, fez esses dois anos desejados, a prima Joaninha sentiu uma preguiça imensa, quase aterrada, do comboio, do estridor da cidade, do 202 e dos seus esplendores. «Estamos aqui tão bem! Está um tempo tão lindo!», murmurava, deitando os braços, sempre deslumbrada, ao rijo pescoço do seu Jacinto; ele sacudia logo Paris, encantado. «Vamos para Abril, quando os castanheiros dos Campos Elísios estiverem em flor!» Mas em Abril vieram aqueles cansaços que imobilizavam a prima Joaninha no divã, ditosa, risonha, com umas pintas na pele, e o roupão mais solto. Por todo um longo ano estava desfeita a alegre aventura. Eu andava então sofrendo de desocupação. As chuvas de Março garantiam uma farta colheita. Uma certa Ana Vaqueira, corada e bem feita, viúva que sentia as necessidades do meu coração, partira com o irmão para o Brasil, onde ele dirigia uma venda. Desde o Inverno, sentia também no corpo como um começo de ferrugem, que o emperrava, e certamente, algures, na minha alma, nascera uma pontinha de bolor. Depois a minha égua morreu. Parti eu para Paris.
Logo em Hendaia, apenas pisei a doce terra de França, o meu pensamento, como pombo a um velho pombal, voou ao 202 – decerto por eu ver um enorme cartaz em que uma mulher nua, com flores bacânticas nas tranças, se estorcia, segurando numa das mãos uma garrafa espumante, e brandindo na outra, para o anunciar ao mundo, um novo modelo de saca-rolhas. E, oh, surpresa!, eis que, logo adiante, na estação quieta e clara de Saint-Jean-de-Luz, um moço esbelto, de perfeita elegância, entra vivamente no meu compartimento e depois de me encarar, grita:
– Eh, Fernandes!
Marizac! O duque de Marizac! Era já o 202.”
[1036]
Entry filed under: Livro do mês.



