"EVOLUÇÃO" (!?)

20 Abril, 2004 at 12:32 pm 1 comentário

Não sei se o autor do “slogan” da “Evolução” terá podido percepcionar por completo – e antecipadamente – as implicações que esta ideia “peregrina” iria ter… Não sei se existia uma intenção deliberada de “apagar a Revolução”. Não restam dúvidas de que se quis pôr a tónica no percurso “pós-PREC”, como se as consequências (neste caso, os efeitos) não decorressem das causas.

O que me parece também inegável é que esta “história do R” vem mais uma vez colocar em evidência a dinâmica da blogosfera, com alguns textos muito bons, como o de Rui Tavares (ontem no Barnabé), mas também os de Paulo Querido (n’O Vento Lá Fora – ver também aqui) e o de Luís Ene (no Ene Coisas) e, já antes, de Luís Rainha no (Blogue de Esquerda – ver também aqui) e ainda este de José Mário Silva. Leia-se também a Internet para as Domésticas. E, a terminar, esta “entrada” do genial Ricardo Araújo Pereira (Gato Fedorento).

É que se há discussão “lá fora, no mundo real”, não tive ainda oportunidade de ver, sobretudo na imprensa “tradicional” – supostamente com maiores responsabilidades neste debate -, textos desta qualidade…

Adenda: Contrariando o parágrafo anterior, ler o artigo de Vital Moreira, hoje no “Público” (ver “entrada estendida”)… e, também, no “blogue” (Causa Nossa). E, a 21 de Abril, novo artigo a ler, de Nuno Severiano Teixeira, agora no Diário de Notícias (ver também em “entrada estendida”).

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Três Questões Sobre o 25 de Abril
Por VITAL MOREIRA
Terça-feira, 20 de Abril de 2004

“A meu ver, só a ignorância histórica, o preconceito ideológico ou o interesse político é que pode contestar a natureza revolucionária do 25 de Abril de 1974. Foi uma revolução em todos os sentidos da palavra: na ruptura “ilegal” com o regime em vigor e na inauguração de uma nova era política; na conversão espontânea e imediata de um pronunciamento militar em genuína revolução popular, com maciças movimentações sociais; nas profundas transformações políticas, económicas, sociais e culturais que desencadeou. Deste ponto de vista, o 25 de Abril compara-se favoravelmente com a revolução liberal (1820-1834) e representa uma ruptura muito mais profunda do que a revolução republicana de 1910, que não implicou mudanças económicas e sociais tão intensas. Basta recordar o fim da ditadura e a instauração das liberdades e da democracia; o termo da guerra colonial e a independência das colónias; o fim do nacionalismo e abertura ao exterior, que haveria de culminar com a adesão à então CEE; o fim do centralismo autoritário e o estabelecimento da autonomia local e regional; a abolição do corporativismo e a mudança das relações de trabalho e das relações económicas; as nacionalizações e a reforma agrária e a consequente nova ordem económica (mesmo se posteriormente metamorfoseada pela contra-reforma agrária e pelas privatizações); as radicais transformações nas relações sociais, na família, na emancipação da mulher, nos costumes; a implementação dos direitos sociais, nomeadamente o direito à segurança social e à saúde (designadamente o SNS), bem como a democratização da educação e da cultura.

Na teoria da transição democrática, sobre a qual existe uma vastíssima literatura desde os anos 80, o caso português aparece justamente apontado como o modelo típico da transição por ruptura ou revolução, comparado com o modelo de transição por evolução (de que o exemplo é o caso espanhol). Isso reflecte-se não somente no modo como se operou a mudança, mas também num conjunto de aspectos que a comparação entre Portugal e a Espanha logo põe em evidência, designadamente quanto à intensidade da mudança, quanto ao envolvimento popular, quanto à substituição das “elites governantes”, quanto à liquidação das instituições, símbolos e nomes do anterior regime, quanto ao apuramento e denúncia oficial do passado autoritário e quanto à “depuração” e eventual punição ou inibição política transitória dos seus responsáveis; quanto à proibição de reconstituição de organizações conotadas com a ditadura; etc.

Existe um argumento segundo a qual a revolução ficou “inacabada”, oriundo sobretudo do PCP e da esquerda anticapitalista em geral. A verdade é que todas as revoluções ficam sempre inacabadas na medida em que deixam por realizar os projectos dos seus protagonistas mais radicais. Mas, se se analisarem os projectos das diversas forças políticas que, originária ou sucessivamente, intervieram na revolução, desde o núcleo inicial do movimento das forças armadas até às forças da extrema-esquerda civil e militar que em certo momento assumiram forte influência na condução do processo revolucionário, até ao “termidor” de 25 de Novembro de 1975, é fácil ver que, se a revolução ficou aquém das ambições mais radicais dos adeptos da “revolução popular” e do socialismo, também é verdade que foi muito além dos projectos bem mais comedidos dos que, desde os sectores militares moderados, passando pelos sectores civis liberais, até ao próprio Partido Socialista, ansiavam essencialmente pelo estabelecimento de uma simples democracia parlamentar, ainda que com uma dimensão social mais ou menos acentuada.

Recorde-se, aliás, que o próprio PCP pautou de início a sua conduta essencialmente pela cartilha da “revolução democrática e nacional”, que Álvaro Cunhal teorizara em pleno fascismo, no seu célebre relatório “Rumo à Vitória”, que era ainda um projecto de revolução democrática, não socialista, se bem que com forte componente anti-imperialista e antimonopolista. Só mais tarde, no pico da agitação revolucionária, e em competição com a extrema-esquerda civil e militar, é que o PCP se deixou tentar pela ideia de transformar a revolução democrática em revolução socialista, com o insucesso que se conhece e que só não teve mais funestas consequências para esse partido e para as próprias “conquistas da revolução” porque o 25 de Novembro não foi tão contra-revolucionário como alguns pretenderam. Por isso, na “normalização” pós-revolucionária consubstanciada na Constituição de 1976 e nas leis que a desenvolveram, bem como nas leis pré-constitucionais que ela legitimou, radicou a edificação de democracia porventura bem mais “avançada” do que era razoavelmente de antecipar imediatamente após a queda da ditadura no dia 25 de Abril de 1974. O “retrocesso” que desde então se verificou em vários sectores, designadamente no campo económico e mais recentemente no campo social, mas também o próprio “descarnamento” das instituições democráticas não devem porém fazer esquecer o inestimável “adquirido democrático” e o enorme progresso económico, social e cultural que constituem a herança irreversível do 25 de Abril.

Por fim, importa contestar a ideia, que hoje tem adeptos em diversas áreas políticas, desde os adversários da revolução até aos desiludidos dela (como ultimamente o escritor José Saramago), segundo a qual Portugal seria de qualquer modo uma democracia, mesmo sem o 25 de Abril, insinuando que poderíamos ter passado por um processo de transição democrática do tipo espanhol ou brasileiro, menos traumático e mais consensual. Não é possível reconstruir a história cancelando hipoteticamente a existência da revolução de 1974. Mas o exercício levar-nos-ia muito provavelmente à conclusão de que não foi por acaso que em Portugal houve uma diferente transição.

A via revolucionária não foi uma escolha, mas sim uma imposição, depois do falhanço da tentativa de liberalização de Marcelo Caetano, para cujo êxito havia algumas condições favoráveis, designadamente a avançada usura e deslegitimação do Estado Novo e a existência de tendências moderadas quer no campo do regime, quer no campo da oposição que poderiam ter protagonizado uma “transição negociada”. Se a débil e fugaz “abertura marcelista” se frustrou rapidamente, com alienação inclusive da pequena mas influente “ala liberal” criada em 1969, isso não se deveu a uma indisponibilidade de compromisso entre as forças da oposição, que não foi testada seriamente, mas sim à incapacidade do regime para lidar com o intratável problema da guerra colonial e com o “tabu” correspondente.

Ora, não é nada provável que esse obstáculo pudesse ter sido contornado pacificamente em momento ulterior, previsivelmente em circunstâncias mais degradadas quer nas colónias, quer no que respeita à degenerescência do regime. Tudo indica que, mesmo mais tardia, a mudança democrática em Portugal, justamente por causa do abcesso colonial, só poderia vir por via revolucionária, a reboque da “terceira vaga democrática” (Huntington), que, sem o 25 de Abril de 1974 – que a iniciou -, teria sido desencadeada na mesma na Grécia ou em Espanha. Seja como for, mesmo que viesse por outra via, mas sempre atrasada de vários anos, nada garante que o resultado fosse idêntico ao que veio a ser com o 25 de Abril, em termos de qualidade do regime democrático e de transformação económica e social. E, de qualquer modo, em matéria de transição democrática, antes cedo do que tarde. Um ano que fosse a mais de regime autoritário (de guerra, de política, de censura, de repressão política e sindical, etc.) seria mais um ano roubado às esperanças dos que ano após ano lutaram para lhe pôr termo.

Ao 25 de Abril só podemos censurar o não ter vindo mais cedo!”

Diário de Notícias
Quarta-feira, 21 de Abril de 2004
“Políticas da memória”
Por Nuno Severiano Teixeira

“O dia estava ensolarado e frio. Como todas as manhãs, às oito horas, saí de casa a pé para o liceu. As aulas começavam às 8 e 30 e eu sempre fui habituado a ser pontual. Mas nesse dia, quando cheguei, os portões estavam fechados. Não havia aulas e o reitor tinha dado ordens para que regressássemos todos para casa. Percebi que havia «qualquer coisa», mas não percebi o quê. Voltei para casa. O meu pai é oficial do Exército e nós morávamos, então, ao pé do quartel. Quando cheguei, deparei-me com uma coluna militar que cortava toda a rua e cercava o quartel. Eu não podia passar para casa, também não podia voltar para o liceu, e, ao que diziam, não convinha que ficasse na rua. Confesso que nesse momento de perplexidade e perante um tal aparato militar não se me pôs a dúvida se aquilo a que estava a assistir era uma Revolução ou uma Evolução.

Hoje, 30 anos depois, devo dizer que não é menor a minha perplexidade perante a polémica a que se tem reduzido o debate sobre as comemorações do 25 de Abril. O debate é tonto, embora o slogan que lhe deu origem – Abril é Evolução – seja tudo menos inocente. Vale a pena, por isso, que nos entendamos sobre os seus objectivos e o seu significado. O debate tem confundido, frequentemente, dois planos que são distintos: o da História, que é uma questão de ciência, e o da memória, que é uma questão de política. No plano da História, a questão não tem qualquer sentido. E não tem sentido porque, pura e simplesmente, não existe. Os historiadores e os cientistas políticos, familiarizados com a literatura sobre os processos de democratização, sabem bem que a democratização portuguesa conheceu dois momentos distintos, ambos fundamentais para a democracia em Portugal. A transição, entre 1974 e 1976, que, ao contrário da generalidade das outras transições democráticas, se caracterizou pela sua especificidade revolucionária. E a consolidação, que, a partir de 1976, se integrou no modelo geral a que Huntington chamou da «Terceira Vaga».

A transição operou-se por ruptura. Por ruptura, nas elites, e por irrupção maciça, na participação popular. Ruptura na esfera política, mas também na esfera económica e social. As lutas em torno do modelo político institucional foram acompanhadas por uma redistribuição brutal e compulsiva dos rendimentos e da propriedade que a Reforma Agrária e as nacionalizações concretizaram. Mas também e, simultaneamente, pela democratização do ensino, a criação do serviço nacional de saúde e do welfare State, com a institucionalização do salário mínimo, das férias e a universalização das reformas. E nem mesmo a dimensão internacional escapou à ruptura revolucionária. Foi ela que pôs fim à guerra colonial e permitiu a descolonização.

Para o bem e para o mal, a revolução está inscrita na matriz original da democracia portuguesa. O 25 de Novembro abriu caminho para a consolidação. E com esta, a democratização portuguesa aproximou-se do modelo «pactuado» das outras democratizações. Regressam as elites tradicionais que, em boa parte, se integram e partilham poder e influência com as elites democráticas. À ruptura substitui-se a integração. No plano económico-social, inicia-se o processo de desmantelamento da herança revolucionária: as indemnizações, as privatizações, rumo à economia de mercado e à modernização, que persiste e vai deixando pelo caminho direitos sociais, então, adquiridos. No plano político, define-se o modelo institucional e triunfa a democracia pluralista. A revisão constitucional de 1982 e a extinção do Conselho da Revolução põem termo à última herança da legitimidade revolucionária e encerram período de democracia tutelada. Estava consumada a consolidação democrática no plano interno. A integração europeia, em 1986, concluiu a consolidação externa e definiu, definitivamente, o novo modelo de inserção internacional. No plano simbólico, a Europa ocupou o vazio deixado pelo Império. Tudo isto é certo e sabido. Mas nada disto é o que está em causa no debate sobre o 25 de Abril.

Porque o que se discute não é a História. É a memória. E é aí que está o não dito. As comemorações não são um acto inocente. Pelo contrário, são um acto político. De política da memória. Uma política que reactualiza a oposição entre a memória individual e a memória colectiva e em que o poder político que comemora se apresenta como o legítimo herdeiro daquilo que comemora. Mais, em que se assume como o intérprete legítimo da memória colectiva. É isso que está em causa no 25 de Abril: a apropriação da memória. A direita contra-revolucionária nunca teve dúvidas de que o 25 de Abril foi uma revolução.

Pelo contrário, acentuou-lhe o carácter revolucionário para se demarcar dela. A esquerda também nunca teve dúvidas. O 25 de Abril era património seu e apropriou-se da sua memória. Há depois um centro-direita e por via da coligação uma direita envergonhada, hoje no poder, que se sentem excluídas dessa memória e que se querem apropriar dela. Abril é Evolução é só isso: um instrumento de apropriação da memória.”

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25 DE ABRIL – "O SÉCULO" UMBERTO ECO – O PÊNDULO DE FOUCAULT (II)

1 Comentário

  • 1. Nilson  |  20 Abril, 2004 às 11:43 am

    A intenção do autor (Manuel Alegre) era essa mesmo, que se falasse disso.
    No entanto penso que terá excedido as suas expectativas.


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