O VOTO EM BRANCO
A propósito do livro de Saramago, “Ensaio sobre a lucidez”, a ler o artigo de Augusto Santos Silva, hoje no Público: “Quando Um Nobel Menoriza a Literatura“.
(Artigo completo em “entrada estendida”)
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“Quando Um Nobel Menoriza a Literatura”
Por AUGUSTO SANTOS SILVA
Sábado, 03 de Abril de 2004
A “polémica dos diabos” que Saramago havia prometido, com o seu “Ensaio sobre a Lucidez”, tem-se desenvolvido com a alarido esperado. É uma polémica política, e não literária ou cultural. A literatura serve apenas de roupagem ou pretexto, coisa que a declaração recorrente, entre os intervenientes, de que (ainda) não leram o romance sumamente ilustra.
Pode e deve, naturalmente, discutir-se o manifesto político de Saramago sobre o “uivo” contra a exaustão da democracia, através do voto em branco. Mas não é menos interessante acrescentar-se-lhe a análise da encenação majestática do autor e da sua obra, que tem sido isso o processo de lançamento público e comercial do livro.
Na segunda-feira em Lisboa, hoje no Porto, o que está em causa não é o romance, mas o panfleto. E quem o apresenta ou debate não são professores ou críticos da literatura, ou sequer vultos proeminentes do campo intelectual, mas sim personalidades políticas cuidadosamente escolhidas, ao modo de um bloco central civilizado e alargado à família comunista, por causa da filiação, ou, como o próprio diz, “fidelidade” de Saramago. Lá estiveram e estarão um PSD culto, um PS de esquerda, um comunista institucional ou uma respeitada independente.
Assim se transformou há dias, na capital, assim se transformará provavelmente hoje a norte, e ainda haverá de fazer-se mais vezes, a literatura em sessão de esclarecimento, promovida e dirigida para milhares de assistentes. Leitores? Não, eleitores. E a cargo de quem? Pois a cargo dos próprios senadores do regime contestado!
José Barata Moura, no papel de comunista institucional, reitor que é da Universidade, ainda é o que menos se deixa prender neste padrão. Mas os outros, os verdadeiros patriarcas? Saramago não consta do panteão literário de Mário Soares, como o próprio declara a quem queira ouvi-lo. Soares esteve lá como paladino oficial da democracia, o que cumpriu com brilho. E Marcelo Rebelo de Sousa, para que foi convocado, se não para garantir a dupla bênção da mão direita do Estado e da televisão das massas?
É suposto que se apresenta um livro para convidar a lê-lo. Mas como se convida alguém a ler um romance, se o próprio autor e a editora se encarregam de descarná-lo de toda a sua matéria literária, para reduzi-lo a um panfleto? Como se atribui a Marcelo, o comentador oficial do reino mediático, o encargo de convidar a ler, se o que ele faz, usando instrumentalmente os livros como as armas da sua consagração maciça, é insinuar todos os domingos a milhões de espectadores que, aos livros, basta folheá-los, não é preciso lê-los nem apreciá-los? Marcelo faz jorrar catadupas de livros, que recebe, mostra e depois remete para a biblioteca da terra, assim conseguindo, de uma penada, mostrar-se conhecedor, culto e benemérito, maneira como outra de montar uma carreira pessoal e política. Mas o que de cada livro ele comunica ao espectador só muito excepcionalmente ultrapassa o que qualquer pessoa leria na badana respectiva.
Só há uma interpretação possível para a escolha de Marcelo, o não-leitor que fala dos livros, por Saramago e pela Caminho. É que, justamente, o seu protagonismo no lançamento encenado do “Ensaio” é a forma mais eficaz de esvaziar o romance da matéria literária, reduzindo-a à superfície da “provocação”.
Acontece que, despido da matéria literária, o texto de Saramago só tem a oferecer-nos o mais chão e previsível primarismo. A saber: a) a democracia (“burguesa”) é a máscara angélica da opressão (até se verifica dispor de uma polícia política…); b) quando a direita governa, então é que a democracia deixa mesmo de sê-lo; c) a oposição institucional, o “partido do meio”, é uma variante quase indistinta do poder, aparência outra da mesma essência; d) a “verdadeira” esquerda só pode estar na fronteira entre a participação táctica e a dissidência estrutural, só é possível ter alternativa se houver alteridade face à própria natureza do regime; e) na democracia, como em qualquer outro sistema de poder, uma oligarquia manda e oprime, as pessoas comuns sofrem e revoltam-se; f) entre os que mandam, os que mandam nas polícias e nos exércitos mostram maldade maior do que os que tratam de coisas úteis, como a cultura, a justiça ou a administração local, e estes são, portanto, “recuperáveis”; g) como a revolução morreu, assassinada pelos seus filhos totalitários, à amargura resta a subterrânea desinquietação da ordem, a irrupção do sobressalto, a clandestina negação, a manipulação dos instrumentos formais da soberania, como o voto em branco, para desafiar o poder no seu próprio terreno. Mas sem positividade, sem futuro, como logo vieram lembrar, a este comunista adversário da democracia mas desencantado da revolução, os ideólogos da “revolução ainda é uma criança”.
Lido como manifesto, o “Ensaio” é a ladainha de um não-democrata pós-revolucionário. Mas isso não merece nenhuma polémica dos diabos, situa Saramago no lugar político e no tempo histórico que ele próprio escolheu.
Para quê, então, menorizar de tal maneira a literatura? Para que é que o nosso Nobel se coloca na posição simétrica dos que buscam no livro a caução de uma envergadura política que procuram desesperadamente transmitir, como faz Santana Lopes com os seus livros-álbuns de autoglorificação, aceitando que se retire qualquer dimensão literária ao seu romance? É verdade que a literatura leve e digestiva fez o seu caminho de afirmação institucional, com o silêncio cúmplice do campo literário, e já merecemos ter, como vamos ter, por convite do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, a representar a literatura portuguesa na Bienal de São Paulo, essa proficiente escritora chamada Margarida Rebelo Pinto. Mas dói-me que doravante se possa dizer que até o Nobel Saramago condescende, por vaidade ou comércio, na desvalorização do que ele faz de melhor, e é literatura, em troca do que faz de pior, e é teimar em ser mestre-escola dos seus concidadãos. Dói-me que nem nisso fosse inteiramente coerente, que, para abençoar a sua negação do regime, se fosse acolher às asas protectoras de senadores e patriarcas desse mesmo regime. E contudo, caros leitores, nada disto era preciso. No “Ensaio sobre a Lucidez”, lutando por entre a ganga doutrinal, vê-se bem viva a imensa qualidade literária de Saramago. Apesar da pose do autor, apesar da encenação político-comercial da editora, está aí mais um grande romance da literatura portuguesa.
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