Archive for 20 Fevereiro, 2007
"E DEUS PEGOU-ME PELA CINTURA" (II) – PRÉ-PUBLICAÇÃO
Guilherme baixou a cabeça, não disse palavra e depois acenou com o peso de uma estátua africana de ébano a quem tivessem removido a história e a lenda. O sol bateu inesperadamente nas cortinas puídas da janela, o inspector Taipas continuou a esfregar as minúsculas mãos e as onze da manhã fizeram-se ouvir. Seguiu-se uma pausa breve, enquanto o dossiê de papel pardo se ia abrindo, página a página, sobre o tampo da secretária. “Senhor Guilherme Moutinho, vou ter que lhe fazer uma série de perguntas. Trata-se de um questionário preliminar, pois ainda não sabemos se alguém, “alguém graúdo” digo eu (com os dedos, Rodolfo Taipas fez o gesto das aspas), irá pegar no caso. Receio bem que sim, pelo meu simples faro, pela experiência e tendo em conta tudo o que se passou… bem, o senhor sabe. Indo directamente ao assunto (Guilherme sentiu-se subitamente bloqueado, enquanto a mente parecia circular à velocidade de um carrossel):
– Onde é que esteve no passado dia 4 de Outubro, entre as 18h30 e as 20h30?
Guilherme lembrava-se perfeitamente do dia: o dia a seguir ao rapto. Fixara-o por isso quase involuntariamente.
– Na rua da Escola Politécnica, na casa de Rute Monteiro ao Príncipe Real e, provavelmente, já no final desse período, no trajecto entre o Príncipe Real e a minha casa na Infante Santo.
– Confirma, portanto, ter estado em casa de Rute Monteiro.
– Confirmo.
– Muito bem. Esteve no quarto de dormir?
– Sim, já tinha lá dormido de 29 para 30 de Setembro, dia em que, ainda de madrugada, Rute Monteiro partiu para o Médio Oriente. No dia 4, lembro-me perfeitamente que foi no quarto que entrei em primeiro lugar, depois de ter aberto a porta.
– Pode provar que já tinha estado na casa de Rute Monteiro antes do dia 4 de Outubro?
Guilherme fez um pequeno silêncio, lembrou rostos, pessoas, datas e sentiu-se no meio de uma súbita confusão.
– Não sei. Será difícil. Rute Monteiro morreu. Talvez algum vizinho…, mas reafirmo que já lá tinha estado e que já lá tinha dormido.
“E Deus Pegou-me Pela Cintura” – Luís Carmelo