Archive for 20 Março, 2012
«Diga ‘Sócrates’ e tudo se explica»
[…] Claro que em rigor, a culpa não é de todos: houve quem, nos anos de descontrolo das contas públicas, toda uma década, não tivesse beneficiado nem de cargos ou sinecuras públicas, de contratos, incentivos ou isenções fiscais concedidas pelo Estado, quem, enfim, tenha dado muito mais do que recebeu do seu país. Mas, por favor, corrijam-me se estou errado: alguém ouviu um banco queixar-se do despesismo público e do endividamento privado? Alguém viu as grandes construtoras de obras públicas – dos aeroportos, dos TGV, das pontes, das barragens, das auto-estradas – preocupadas com os gastos do Estado? Alguém ouviu um autarca dizer que não precisava de mais dinheiro para criar empresas municipais, construir rotundas ou piscinas públicas dez vezes mais caras que o preço normal? Alguém ouviu a oposição reclamar menos investimento público, menos gastos com a educação, a saúde, a cultura, as reformas, as Forças Armadas, as autarquias? Se alguém sabe disso por favor dê-me notícia, porque eu não consigo recordar-me.
Vezes sem conta, anos a fio, escrevi aqui contra o desvario despesista do governo Sócrates e outros antes dele. Contra Mário Lino e Paulo Campos, contra o TGV, contra o novo aeroporto de Lisboa, contra os projectos PIN e as PPP, contra as auto-estradas desertas e os negócios das barragens da EDP, contra o Terminal de Contentores de Lisboa, contra o saque organizado do dr. Jardim sobre os contribuintes, contra a nacionalização do BPN, contra os enredos particulares da Caixa Geral de Depósitos, contra os escritórios da advocacia de tráfico de influências, presentes em todos os grandes negócios ruinosos para o país. Contra aquilo a que chamei então “a fatal atracção dos socialistas pelo grande capital”. Mas esta semana, todos tivemos ocasião de constatar que, no que toca às relações entre o Estado e os poderosos, nada de essencial mudou: é assim com a Lusoponte, com a Mota-Engil, com o BPN, com a Brisa ou com a EDP. Um governo que se gaba de ir além do acordado com a troika, quando se trata de atingir os fracos, afinal está muito aquém do que a troika recomendou para com os fortes.
Mas a culpa continua a ser de Sócrates. Descobrimos que o secretário de Estado queria mesmo pagar duas vezes à Lusoponte, mas a culpa é de Sócrates. Descobrimos que a Brisa reclama mil milhões de euros (!) de indemnização porque a introdução de portagens numa SCUT diminui as suas expectativas de receita, e a culpa é de Sócrates. Descobrimos que mais depressa se derruba um secretário de Estado do que os lucros da EDP à custa dos consumidores, e a culpa é de Sócrates. Quer-se investigar como é que este Governo já gastou 900 milhões de euros a “privatizar” o BPN, e é preciso é investigar Sócrates. E assim sucessivamente. O nome Sócrates é o santo-e-senha que chama a si todos os males e toda a sujidade, limpando tudo o resto, agora e para sempre. […]
(Miguel Sousa Tavares, Expresso, 17 de Março de 2012 – vale a pena ler o artigo completo)