"A CAPITAL" / "O COMÉRCIO DO PORTO" – O FIM
Dois títulos que fazem parte da nossa história colectiva, mas que não resistiram as “leis do mercado”, “A Capital” e “O Comércio do Porto” são hoje publicados pela última vez.
APPIO SOTTOMAYOR
Em 21 de Fevereiro de 1968, os ardinas começaram a apregoar um título de jornal que soou estranho a muitos ouvidos. A Capital – gritavam os vendedores, juntando o novo brado aos já habituais que anunciavam a República, o Diário de Lisboa, o Diário Popular. A surpresa não era, no entanto, generalizada: grande número de habituais leitores da imprensa sabiam já que um outro diário iria aparecer. Não que houvesse – como hoje se faria – luzida campanha de televisão e rádio a anunciar o evento, nem que aparecessem cartazes apelativos pelas esquinas a dar conta do caso. Antes se tratava de um extraordinário caso de publicidade “de ouvido”. A notícia espalhou-se e foi confirmada pelos factos. E assim se pode dizer, sem pruridos, que houve um jornal que, ao sair das máquinas pela primeira vez, já tinha leitores assegurados.
Para o êxito inicial e a expectativa com que o diário foi recebido concorreram vários factores. Será de pôr em primeiro lugar a personalidade dos seus principais responsáveis, Norberto Lopes e Mário Neves. Os dois jornalistas tinham sido, até 1967, respectivamente director e director-adjunto do Diário de Lisboa. Este periódico, não se colocando numa situação de oposição aberta e declarada ao regime do Estado Novo (como a República), representava, porém, um certo escol de intelectualidade que o tornava respeitado pelo público, sendo tido em conta pelo poder. Tratava-se de um vespertino bem escrito, que tradicionalmente dispunha de um corpo redactorial de primeira água, habituado a não informar sem uma investigação séria. Algumas medidas de carácter administrativo e uma remodelação gráfica pouco ou nada compartilhada pela direcção do jornal levaram à demissão dos dois principais responsáveis.
Decidiram estes então lançar outro periódico. O prestígio de que ambos gozavam terá sido uma das causas do interesse pelo novo projecto. Tratar-se-ia, por certo, de “coisa séria”. Outra importante causa da expectativa terá residido no simples facto de ver surgir um novo título. Ao leitor actual, habituado a uma situação de liberdade geral, nada dirá este facto: que mais teria criar outra empresa? Acontece que estávamos em 1968, o Estado Novo era tentacular, Salazar era o Presidente do Conselho e ninguém, dentro do regime, veria com entusiasmo a abertura de um novo jornal encabeçado por dois homens tidos à partida como não afectos. Ao que constou, Mário Neves ter-se-á valido, por uma única vez, do seu parentesco com o Prof. Marcello José das Neves Alves Caetano para ajudar no empurrão inicial. O certo é que as autorizações foram dadas.
Outra novidade residiu na forma de constituir a empresa.
Economicamente, esta não ofereceria à partida grandes aliciantes: o mercado parecia saturado; só em Lisboa, saíam de manhã o Diário de Notícias, O Século, A Voz, o Novidades, o Diário da Manhã; à tarde, publicavam-se os três já referidos. Outros diários, nomeadamente os do Porto (Comércio do Porto, O Primeiro de Janeiro, Jornal de Notícias) eram distribuídos a nível nacional. Era razoável, pois, perguntar se caberia mais um título.
Constituiu-se então a Sociedade Gráfica de A Capital. Esta era, na base, uma sociedade de redactores – os dois directores e ainda Maurício de Oliveira, Álvaro Salema, Carlos Ferrão, Fernando Soromenho, Carlos Machado, Alves Fernandes, Manuel Nunes e Eugénio Quinhones de Sá. Mas estes eram apoiados por uma quase multidão de pequenos accionistas, entre os quais avultavam profissionais liberais, leitores habituais dos artigos de Norberto Lopes, amigos de Mário Neves, confiantes em que ambos lhes saberiam dar um jornal independente e digno. O dinheiro não abundou, mas apareceu. O próprio título poderá ter exercido alguma influência no agrado dos leitores mais velhos. Lembravam-se ainda de um diário honesto, aguerrido, republicano e democrático, que tinha sido publicado em Lisboa até 1926. Tinham passado 42 anos, é certo. Mas a memória popular é muito mais consistente do que se julga.
Gozando destas ou doutras vantagens, arrostando com os riscos apontados e com uma evidente falta de meios técnicos, A Capital surgiu, há 37 anos. Para ficar. Para tentar cumprir o objectivo a que se propôs: ser um jornal colocado “acima de tendências partidárias, de interesses privados e das oligarquias reinantes”, procurando fazer “crítica construtiva e, a despeito de divergências de opinião, não regateando aplausos a quem os mereça”. “Nem demagogia irresponsável nem aquiescência subserviente”, foi a promessa feita em 21 de Fevereiro de 1968. São quase quatro décadas de História, vivida por dentro todos os dias.”
(Continua na edição impressa)
“COMÉRCIO diz “Até já” aos seus leitores a partir de hoje
Publicações de “O Comércio do Porto” e “A Capital” ficam suspensas a partir de hoje e por tempo indeterminado
O grupo de media espanhol Prensa Iberica alegou razões financeiras para abandonar os diários que tinha em Portugal
PATRÍCIA CARVALHO
Espera-se que não seja um Adeus, mas apenas um Até Já. Esta é a última edição do COMÉRCIO a sair para as bancas, depois do representante da Prensa Ibérica em Portugal, António Matos, ter tornado pública, ontem, a decisão de suspender o diário portuense, a par com o lisboeta “A Capital”.
O grupo espanhol de media abandona, assim, os negócios no nosso país, alegando graves prejuízos financeiros. Por enquanto, a publicação dos dois diários fica suspensa até que apareça um comprador interessado em reactivar os títulos. A partir de segunda-feira, a empresa começa a negociar individualmente a saída dos trabalhadores.
O director-geral das publicações da Prensa Ibérica em Portugal, António Matos, chamou todos os trabalhadores do COMÉRCIO ao início da tarde, para lhes comunicar “a notícia que ninguém queria ouvir”.
A publicação do diário mais antigo da imprensa continental fica suspensa a partir de hoje e por tempo indefinido, depois das tentativas de venda realizadas ao longo da semana terem saído goradas. António Matos seguiu depois para Lisboa onde iria comunicar aos funcionários de “A Capital” a mesma notícia.
Numa carta enviada a todos os funcionários, António Matos explica que “o não aumento visível das vendas e a quebras nas receitas publicitárias têm tido como consequência que a empresa proprietária, New D – Notícias do Douro, Lda., apresente, ao longo dos últimos anos, resultados negativos avultados”. Pelas contas da empresa, o prejuízo financeiro “superava um milhão e 200 mil euros no primeiro semestre em curso, tendo chegado a um valor diário superior a seis mil euros, o que significa, nos últimos três anos, um prejuízo global superior a seis milhões de euros”.
De acordo com o director do COMÉRCIO, Rogério Gomes, a Prensa Ibérica recusou a possibilidade de aquisição dos dois títulos em causa por parte de um grupo de cinco quadros da empresa – operação designada por MBO (Management Buyout Operation) -, alegando “haver dúvidas sobre a solvência dessa MBO”, disse, numa conferência de imprena, a meio da tarde.
Depois do anúncio oficial da suspensão do COMÉRCIO foram muitas as manifestações de solidariedade para com os jornalistas e restantes funcionários da empresa.
Em comunicado, o Sindicato dos Jornalistas (SJ), acusou a Prensa Iberica de “silenciar dois jornais que representam oportunidades irrepetíveis de diversidade informativa”, avisando o grupo espanhol que “se algum dia pretender voltar a investir em Portugal […] enfrentará séria desconfiança quanto aos seus intentos e capacidade para assumir todos os riscos das suas estratégias expansionistas”.
O SJ diz mesmo que a decisão de suspender o COMÉRCIO e “A Capital” é “uma atitude irresponsável que não honra o Grupo nem inspira confiança” e promete continuar a trabalhar na tentativa de “fazer suspender a decisão da administração”.
Solidariedade
Também da parte do poder político e da sociedade civil surgiram manifestações de apoio ao COMÉRCIO, desde logo pela boca do presidente da Câmara de Gaia, Luis Filipe Menezes que, à margem de uma inauguração, anunciou estar “disponível” para ajudar, nomeadamentem, através de um “apelo aos presidentes da Junta Metropolitina do Porto para uma reunião nos próximos dias em que se juntem 20 empresários da região de forma a manter o jornal”. Menezes disse ainda:
“É incrível como os agentes políticos e o tecido empresarial do Norte deixam morrer o jornal mais antigo do continente e fico perplexo por não haver um político de esquerda que fale dos 60 trabalhadores do jornal que vão para o desemprego.Temos que salvar o COMÉRCIO porque se ele morre, morre uma parte da cidade e do país.”
Também ao final da tarde, o vereador da CDU, Rui Sá, e o líder da Assembleia Municipal da mesma força política, Artur Ribeiro, passaram pelas instalações do jornal para deixar “um abraço” aos funcionários da casa. A Cooperativa �?rvore divulgou um texto, que deverá tornar-se num abaixo-assinado, a favor da continuidade do COMÉRCIO.
Entretanto, a agência Lusa divulgou, ontem, que o grupo espanhol LB-Brothers Venture Capital pretende negociar, na próxima segunda-feira, a venda de “A Capital”. Apesar da suspensão da publicação do diário lisboeta, a partir de hoje, o representante da empresa garantiu que a LP-Brothers “mantém o interesse na compra do título”.
À Lusa, o director de “A Capital”, Paulo Narigão Reis, disse estar “surpreso” com a decisão, acrescentando: “Sabíamos que a espada estava sobre nós, mas não pensámos que fosse para já. Fomos apanhados de surpresa pela rapidez da decisão”.
Por enquanto, o COMÉRCIO fica por aqui. Encontramo-nos um dia destes.
Até já.”
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