“TABACARIA” – FERNANDO PESSOA

14 Setembro, 2003 at 6:08 pm 4 comentários

“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,

O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.”

Álvaro de Campos, 15-1-1928

[264]

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CURIOSIDADE PESSOA E OS SEUS HETERÓNIMOS

4 comentários

  • 1. Ana's avatar Ana  |  16 Agosto, 2004 às 12:15 am

    Achei uma parte do texto “Tabacaria” do Pessoa.
    Boa semana.

    Beijos, fabinha.

  • 2. leonardo's avatar leonardo  |  20 Setembro, 2004 às 3:32 am

    ola..por algum acaso haveria continuacao o poema tabacaria de fernando pessoa …pois a versao que li era maior e nao terminava assim…ja procurei em tudo que e lado

  • 3. looking4good's avatar looking4good  |  28 Setembro, 2004 às 7:29 pm

    Pode encontrar o poema completo A Tabacaria (e outros poemas), de Àlvaro de Campos, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, no meu blog
    http://www.nothingandall.blogspot.com

    Não deixe de pôr um comentário.

  • 4. luciana's avatar luciana  |  4 Novembro, 2004 às 7:22 pm

    oiee alguem sabe onde eu posso baixar da internet o livro do Pernando Pessoa?? EU E MEUS heterónimoS por favorrr me ajudemmm eu já procurei mais num axei valewww bjus


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