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MENSAGEM (VI)

A III Parte – “Encoberto” integra: (i) Os Símbolos (“D. Sebastião”, “O Quinto Império”, “O Desejado”, “As Ilhas Afortunadas” e “O Encoberto”; (ii) “Os Avisos” (“O Bandarra”, “António Vieira” e “Terceiro”); (iii) “Os Tempos” (“Noite”, “Tormenta”, “Calma”, “Antemanhã” e “Nevoeiro”).

Começa por mostrar-se a convicção no regresso do “Desejado” – o mito central do sebastianismo (“É Esse que regressarei”), não correspondendo porém, necessariamente, a um ente individual, devendo, em alternativa, consubstanciar-se no conjunto do povo português, agindo sob a vontade de Deus.

O Encoberto surge como uma alusão à misteriosa Ordem dos Rosa-Cruz, em cujos princípios se deverá basear o Quinto Império (“Grécia, Roma, Cristandade, / Europa … os quatro se vão”):

“Quando virás, ó Encoberto,
Sonho das eras português,
Tornar-me mais que o sopro incerto
De um grande anseio que Deus fez?”

Também o Padre António Vieira foi um dos profetas do Quinto Império, manifestando na “História do Futuro” o seu místico sebastianismo. No decurso das suas missões no Brasil, escreveu um tratado designado “Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo”.

Em “Os Tempos”, os irmãos “Poder” e “Renome” representam, respectivamente, o Império português e a fama que universalizou Portugal.

E, depois da “Tormenta”, vem a “Calma”. O “Antemanhã” representa aquilo por que é necessário passar antes do despertar.

O “Nevoeiro” antecede a chegada da luz (segundo o mito, D. Sebastião voltaria numa manhã de nevoeiro); na confusão do nevoeiro:

“Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem…
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro.
É a Hora! ”

“Valete, Fratres”.

(“Republicação”)

[1953]

1 Janeiro, 2005 at 6:30 pm 2 comentários

MENSAGEM (V)

Vasco da Gama realizou a extraordinária façanha, o grande objectivo dos Descobrimentos: a conquista da Índia por via marítima (“Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra / Suspendem de repente o ódio da sua guerra / E pasmam”).

Este empreendimento teria naturalmente custos significativos, causando grandes sofrimentos, com muitas vidas perdidas:

“Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!”;

mas valeu a pena?:

“Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem de passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu”.

O desastre de Alcácer Quibir, o mistério que envolve o desaparecimento de D. Sebastião deverá ser o impulso para o renascimento de Portugal:

“Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império”.

Seguiu-se a perda da independência (“Senhor, a noite veio e a alma é vil”), mas é preciso acreditar que é possível renascer:

“Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda”.

(“Republicação”)

[1951]

31 Dezembro, 2004 at 2:25 pm

MENSAGEM (IV)

A II Parte – “Mar Português” inclui: “O Infante”; “Horizonte”; “Padrão”; “O Monstrengo”; “Epitáfio de Bartolomeu Dias”; “Os Colombos”; “Ocidente”; “Fernão de Magalhães”; “Ascensão de Vasco da Gama”; “Mar Português”; “A Última Nau” e “Prece”.

A posse do mar permite a ligação do mundo (relembrando o Infante D. Henrique):

“Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse”,

mas a missão de Portugal não está ainda concluída:

“Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!”;

não basta o “mar com fim”:

“E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português”,

é necessário o “mar sem fim”, através do qual se alcançará um ponto divino:

“E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na terra calma
O porto sempre por achar”.

Tal como o Adamastor em “Os Lusíadas”, o “Monstrengo” representa o temor de vencer sentido pelos marinheiros, mas, ao mesmo tempo, os obstáculos a vencer:

“E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»”

Colombo, que tentara durante anos o apoio do Rei de Portugal, acabaria por descobrir o Novo Mundo sob a égide dos reis católicos de Espanha; significa aqui as oportunidades perdidas (“Outros haverão de ter / O que houvermos de perder”), mas também que a missão de Portugal vai mais além da dos “Colombos” (“Mas o que a eles não toca / É a Magia que evoca / O longe e faz dele história”).

Ocidente”, porque Portugal, sendo a “cabeça da Europa“, tem de cumprir a missão do Ocidente.

(“Republicação”)

[1949]

30 Dezembro, 2004 at 6:29 pm

MENSAGEM (III)

“As Quinas” começam com “O Eloquente” D. Duarte, prosseguindo com os Infantes D. Fernando, o “santo cavaleiro”:

“Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça
A sua santa guerra
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma”,

D. Pedro e D. João; finaliza com a “personagem-símbolo”, o (“loucamente”) ambicioso D. Sebastião:

“Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a sorte a não dá
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?”.

A “loucura pela grandeza” de D. Sebastião alia-se de seguida ao misticismo da espada de Nuno Álvares Pereira, o líder preparado para a batalha:

“Mas que espada é que, erguida,
Faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida
Que o Rei Artur te deu”.

A I Parte conclui-se com: o Infante D. Henrique, o senhor do mar, com “O globo mundo em sua mão”; D. João II, uma das figuras de maior influência na História da humanidade, por via do decisivo impulso dos Descobrimentos:

“Braços cruzados, fita além do mar.
Parece em promontório uma alta serra.
O limite da terra a dominar
O mar que possa haver além da terra”;

e, por fim, o vice-rei da Índia D. Afonso de Albuquerque.

(“Republicação”)

[1946]

29 Dezembro, 2004 at 6:28 pm

MENSAGEM (II)

A I Parte – “Brasão” compreende: (i) “Os Campos” (“O dos Castelos” e “O das Quinas”); (ii) “Os Castelos” (“Ulisses”, “Viriato”, “O Conde D. Henrique”, “D. Tareja”, “D. Afonso Henriques”; “D. Dinis” e “D. João I e D. Filipa”); (iii) “As Quinas” (“D. Duarte, rei de Portugal”, “D. Fernando, infante de Portugal”, “D. Pedro, regente de Portugal”, “D. João, infante de Portugal” e “D. Sebastião, rei de Portugal”); (iv) “A Coroa”; (v) “O Timbre”.

Falando da Europa (“A Europa jaz, posta nos cotovelos”), o autor começa por sugerir a missão de Portugal (“De Oriente a Ocidente jaz, fitando”; “Fita, com olhar ‘sfingico e fatal, / O Ocidente, futuro do passado”), tendo como um dos aspectos fundamentais a ligação do Oriente ao Ocidente, não apenas do ponto de vista geográfico, mas também a nível dos valores espirituais.

A glória tem um preço (“Compra-se a glória com desgraça”); só pode ser alcançada quando o ter não for colocado à frente do ser:

“Baste a quem baste o que lhe basta
O bastante de lhe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar”.

N’“Os Castelos”, surgem os nobres brasões como arquétipos: o guerreiro e lutador Ulisses (fundador da cidade de Lisboa – “Este que aqui aportou”); Viriato, o símbolo do heroísmo e do espírito da independência lusitana:

“Nação porque reencarnaste
Povo porque ressuscitou
Ou tu, ou o de que eras a haste
Assim se Portugal formou”;

o Conde D. Henrique:

“A espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
Que farei eu com esta espada?
Ergueste-a, e fez-se”;

a “mãe-pátria” D. Tareja (“Ó mãe de reis e avó de impérios, / Vela por nós!”); o “pai. D. Afonso Henriques” (“Dá-nos o exemplo inteiro / E a tua inteira força!”); “O plantador de naus” D. Dinis; D. João I (“Mestre, sem o saber, do Templo / Que Portugal foi feito ser”) e D. Filipa, a mãe da “Ínclita geração”:

“Que enigma havia em teu seio
Que só génios concebia?
Volve a nós teu rosto sério,
Princesa do Santo Gral,
Humano ventre do Império,
Madrinha de Portugal”.

(“Republicação”)

[1943]

28 Dezembro, 2004 at 6:27 pm

MENSAGEM (I)

Mensagem.jpgA “Mensagem” (livro de poemas, formando realmente um só poema) tem três grandes “andamentos”:

– na primeira parte, “Brasão”, o autor apresenta o Portugal profundo, o Portugal “rosto da Europa”, destacando os “construtores da pátria”, assim como algumas características indispensáveis à realização dos Descobrimentos;

– a segunda parte, “Mar Português”, dá-nos uma “fotografia”, ao mesmo tempo épica e dramática, do que foi a grandiosa, mas dolorosa empreitada dos Descobrimentos (uma missão cumprida como missão divina, mas com um preço significativo, que leva à interrogação “Valeu a pena?”);

– na terceira e última parte, “O Encoberto”, defende-se a possibilidade da regeneração nacional pelo mito e pelos seus símbolos, mesmo se, em termos políticos, económicos, sociais e culturais, tudo pudesse parecer perdido.

Para o poeta, o mito sebastianista deve ser aproveitado, de forma a estabelecer a atmosfera espiritual necessária à realização do Quinto Império (“…parte, antes, com a civilização em que vivemos, do Império espiritual da Grécia, origem do que espiritualmente somos. E, sendo esse o Primeiro Império, o Segundo é o de Roma, o Terceiro, o da Cristandade, e o Quarto o da Europa… isto é, da Europa laica de depois da Renascença”) – um Império não no sentido do guerreiro, territorial ou material, mas no sentido de um Império do Espírito e da Cultura.

A contínua actualidade da “Mensagem” faz pensar e renovar espiritualmente a “nação” portuguesa, constituindo um incitamento ao reforço do seu papel no mundo.

(“Republicação”)

[1939]

27 Dezembro, 2004 at 6:26 pm

FERNANDO PESSOA – CARTA A ADOLFO CASAIS MONTEIRO (V)

“Como escrevo em nome desses três?… Caeiro, por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular o que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas cousas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso.)

Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever.

Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo (escreveu o poeta). Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Externa do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é Criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto à «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente – o que é facto – que me foi permitido folhear Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1888. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho.

Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja saber, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.

Abraça-o o camarada que muito o estima admira.

Fernando Pessoa

P. S. (!!!)

14-1-1935”

[1933]

23 Dezembro, 2004 at 6:24 pm 1 comentário

FERNANDO PESSOA – CARTA A ADOLFO CASAIS MONTEIRO (IV)

“Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve.

Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à última hora, arranjar qualquer cousa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos – um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive de desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mal, e que dá o Álvaro em botão…

Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido – estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido -, diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!

Mais uns apontamentos nesta matéria… Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.”

[1929]

22 Dezembro, 2004 at 6:22 pm

FERNANDO PESSOA – CARTA A ADOLFO CASAIS MONTEIRO (III)

“Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas cousas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as cousas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente – um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas… Cousas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.

Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maior idade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo… E tenho saudades deles.

(Em eu começando a falar – e escrever à máquina é para mim falar -, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz.)

“Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irregular (não no estilo de Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com o título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente… Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.”

[1927]

21 Dezembro, 2004 at 6:23 pm

FERNANDO PESSOA – CARTA A ADOLFO CASAIS MONTEIRO (II)

“Respondo agora directamente às suas três perguntas: (1) plano futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.

Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da «Mensagem», que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão inteiramente remodelada do Banqueiro Anarquista; essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome esta frase no sentido de Prémio Nobel imanente.) Depois – e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia – tenciono, durante o verão, reunir o tal grande volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que «Mensagem» já manifestou.

“Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo – penso-o com tristeza – pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!

Creio que respondo à sua primeira pergunta.

Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!

Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e cousas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico em mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…

Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro – os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.”

[1925]

20 Dezembro, 2004 at 6:22 pm

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