O CODEX ARQUIMEDES
23 Maio, 2007 at 12:32 pm Deixe um comentário
“O Sr. B disse-me que comprou um livro feio. Como ele pagara dois milhões de dólares por ele, não tomei isto à letra. Mas não. Agora que o tinha nas mãos via que ele fora sincero. Era feio. Era pequeno – mais ou menos do tamanho de um pacote de quilo de açúcar. Ao abri-lo, vi que as páginas tinham manchas castanhas na sua coloração. Eram visíveis marcas de água coincidentes ao abrir as páginas face a face. As páginas tendiam a ser mais claras no meio do que nas margens, onde ainda estavam mais manchadas. Aliás, as pontas das folhas estavam pretas, como se tivessem sido queimadas. Sobreposto ao castanho das páginas estava bordada uma rede de letras gregas castanho escuras todas desordenadas. A monotonia das páginas só era quebrada por uma ou outra mancha vermelha de uma capitular ou, por vezes, por manchas arroxeadas de bolor. Ao folhear as páginas, pude por vezes distinguir os círculos e as rectas de algo que pareciam diagramas que, para grande aborrecimento de quem lia, desapareciam na margem interior, na lombada. Comparado com outros manuscritos em que trabalhara, as páginas não dobravam muito bem e estavam deformadas. Por vezes, quando virava uma página acontecia-me deparar subitamente com um formato diferente. Volta e meia ficava pura e simplesmente com uma página na mão. À medida que fui folheando o livro todo houve quatro páginas que se destacaram por terem um certo encanto, pois tinham gravuras, mas no conjunto foi uma experiência sensaborona. E então para o fim, as páginas tinham um aspecto tão frágil e tão bolorento que fechei o livro, alarmado. Este livro, pelo qual o Sr. B pagara uma fortuna, estava nas últimas.
Esta descrição não é muito útil, por isso, permitam-me que descreva o livro etimologicamente. É um manuscrito, ou em termos mais técnicos, um códice manuscrito. Derivado das palavras latinas manu (à mão) e scriptus (escrito), um manuscrito é todo escrito à mão. Fundamentalmente, difere de um livro impresso porque não é um de muitos livros impressos numa edição. É único. Outros manuscritos podem conter alguns dos textos. Nesta fase, tudo o que eu sabia é que nenhum outro manuscrito continha as obras em grego de Arquimedes, Método, Stomachion ou Dos Corpos Flutuantes. Em segundo lugar, este manuscrito é um palimpsesto. A palavra deriva dos termos gregos palin (outra vez) e psan (raspar), o que significa que o pergaminho utilizado para o fazer foi raspado por mais de uma vez. Como veremos, para fazer pergaminho há que raspar a pele de animais. E se se quiser reutilizar pergaminho já usado para fazer um livro, há que raspar novamente a pele para apagar o texto preexistente antes de se escrever por cima deste. Este palimpsesto manuscrito era composto por 174 fólios. O fólio, do latim folium (folha), tem uma frente e um verso – um recto e um verso –, que equivalem às páginas dos livros modernos. Estavam numerados de 1 a 177 mas, misteriosamente, faltavam três números. Espero que o Sr. B soubesse que lhe faltavam alguns fólios
Actualmente o livro chama-se o Palimpsesto Arquimedes, mas isto pode ser algo confuso. Desenganem-se: o manuscrito é um livro de orações. Parece um livro de orações, tem o toque de um livro de orações, tem até o cheiro de um livro de orações, e são orações o que vê nos seus fólios. Só se chama Palimpsesto Arquimedes porque foram usados para o fazer os fólios retirados a um manuscrito mais antigo que continha os tratados de Arquimedes. Mas, atenção, o texto de Arquimedes fora raspado. Note-se, também, que os copistas do livro de orações usaram fólios retirados de vários outros manuscritos bem como dos manuscritos de Arquimedes. Aquando da venda ninguém fazia ideia do que estava nestes fólios: estes não se pareciam com fólios do manuscrito de Arquimedes nem aparentavam ser todos do mesmo manuscrito.”
O Codex Arquimedes, Reviel Netz e William Noel, Edições 70 (excerto do Capítulo I)
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